Em 2017, o Rio de Janeiro sediou o congresso da International Fiscal Association (IFA), onde o seu tema 02 foi denominado "O futuro dos Preços de Transferência". Em tempos de BEPS e a discussão sobre o papel da OCDE na coordenação das regras de tributação internacional, o momento não poderia ter sido mais adequado.
No mesmo ano, o Brasil realizou seu pedido formal de acesso à OCDE. É de conhecimento geral o fato que o regime brasileiro de preços de transferência está muito distante daquele preconizado nas "Transfer Pricing Guidelines" da OCDE, e que pode levar à dupla tributação, então será necessário que os legisladores brasileiros revejam o regime atual e o alinhem aos padrões da OCDE. Mas por quê?
Um pedido para mudança
Recentemente, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgou um relatório demonstrando as razões pelas quais a economia brasileira é uma das economias mais fechadas mundialmente. Uma das principais razões é a inabilidade do país de se integrar às cadeias de suprimento globais, a menos que o país seja o fornecedor das commodities ou o consumidor dos produtos acabados. Além da logística, dos aspectos aduaneiros ou das complicações trabalhistas do país, uma razão bastante factível advém das regras de preços de transferência (PT).
As regras brasileiras de PT são de 1996 e, quando da sua introdução, apresentavam uma finalidade anti-abuso e supostamente inspiradas no padrão arm's length, como a Exposição de Motivos da Medida Provisória que resultou na Lei n. 9.430/1996 explicou. No entanto, a política tributária brasileira sempre privilegiou a simplicidade e praticabilidade, mesmo quando persistia o risco de dupla (ou não) tributação. Os tribunais reconheceram este fato em diversas ocasiões, e a metodologia de margens fixas foi vista como uma medida a garantir a arrecadação, sem gastar muito com pessoal de fiscalização e treinamento.
Esta posição do país também é reforçada pela ausência do paragrafo 2 do art. 9º da Convenção-Modelo da OCDE nos Acordos de Bitributação firmados pelo Brasil, deixando claro que o país não aceitaria ajustes correlativos. Porém, mais recentemente, as autoridades fiscais brasileiras introduziram a regulamentação do procedimento amigável (atualmente regulamentado pela Instrução Normativa 1,846/2018) que, supostamente, vem com o objetivo de corrigir uma dupla tributação resultante de operação com país parceiro de acordo de bitributação com o Brasil.
Recentemente, a OCDE e a Receita Federal do Brasil emitiram um estudo-conjunto sumarizando suas conclusões ao comparar o regime brasileiro de preços de transferência e as Transfer Pricing Guidelines da OCDE. O estudo compreensivo demonstrou diversas diferenças que deveriam ser reconciliadas antes da adesão do país ao organismo internacional. Neste contexto, o objetivo do presente texto é pontuar as diferenças mais relevantes para grupos internacionais, assim como explicar um pouco do regime existente.
Panorama breve dos métodos
De acordo com a legislação brasileira de PT, à exceção das transações com commodities listadas na Instrução Normativa 1,396/2013, o contribuinte possui livre escolha de um dos seguintes métodos para testar a transação com parte relacionada:
Importação
i) Método dos Preços Independentes Comparados (PIC): o método dos Preços Independentes Comparados é o mais próximo do método CUP previsto nas Guidelines, mas o conceito de similaridade limita bastante a sua utilização;
ii) Método do Preço de Revenda Menos Lucro (PRL): este método é, de longe, o mais utilizado no Brasil para importações, uma vez que não necessita de suporte documental de outras entidades além da parte analisada no Brasil. É definido como a média aritmética ponderada de revenda de bens, serviços ou direitos, calculados de acordo com a fórmula que compara o percentual de participação do bem, serviço ou direito importado no custo do produto vendido e, sem seguida, aplica o mesmo percentual ao preço de venda. Tal resultado informará o valor pelo qual o produto importado foi "revendido" e, deste valor, subtraindo-se a margem de cálculo predeterminada, que pode ser de 20%, 30% ou 40%, a depender do setor, chegaremos ao preço parâmetro, a ser comparado com o preço praticado na importação;
iii) Custo de produção mais tributos e lucro (CPL): este método é definido pela média aritmética ponderada de bens, serviços ou direitos, idênticos ou similares, adicionados por tributos e taxas cobrados no país de origem, e de uma margem de lucro de 20% sobre tal custo.
Exportação
i) Preço de venda nas exportações (PVEx): este método é similar ao PIC, porém onde compara-se apenas a entidade brasileira para fins de verificação de preço parâmetro (vendas efetuadas pela empresa brasileira para partes não relacionadas), para fins de obtenção do comparável, ou ainda outro exportador brasileiro não relacionado vendendo produtos idênticos ou similares;
ii) Custo de Aquisição ou de Produção mais tributos e lucro (CAP): o método do custo de aquisição ou produção mais tributos e lucro é o método mais utilizado para demonstração de receitas de exportações. Basicamente, ele baseia-se na média aritmética de aquisição ou produção de bens, serviços ou direitos exportados, adicionado a uma margem de lucro de 15%; e
iii) Preço de venda por atacado (ou a varejo) no país de destino, diminuído do lucro (PVA/PVV): O método de preço de venda no varejo ou no atacado é definido como a média aritmética de bens, serviços ou direitos, idênticos ou similares, no país de destino, excluindo tributos que tenham composto o preço e uma margem de lucro de 15% no atacado, ou 30% no varejo.
É importante ressaltar que no Brasil não é permitido o "basket approach", de maneira que o contribuinte deverá seguir o mesmo método para cada produto, não sendo possível compensar ajustes entre produtos diferentes. Por outro lado, o contribuinte poderá escolher o método que ofereça o menor ajuste, contanto que possua a documentação necessária a suportá-lo.
Transações com Commodities
No Brasil, as transações envolvendo commodities estão inspiradas no "sexto método" da OCDE, porém, como esperado, possuem algumas derivações. Existem dois métodos para o teste de commodities, o Preço sob Cotação na Importação (PCI) e o Preço sob Cotação na Exportação (PECEX). Ambos estão baseados nos comparáveis necessariamente oriundos de bolsas de mercadorias e futuros reconhecidas oficialmente, e são permitidos alguns ajustes quanto a quantidade, pureza, etc. No entanto, como a OCDE coloca no relatório-conjunto, "tais ajustes estão limitados aos especificados na legislação e não consideram a análise funcional de acordo com as Guidelines da OCDE" (em tradução livre).
Royalties e Propriedade Intelectual
No caso da legislação de royalties e propriedade intelectual (PI), o país possui seu próprio conjunto de regras que remontam à década de 50 (para fins de dedutibilidade), e um tratamento único e peculiar para PT: pagamentos de royalties ao exterior estão excluídos do escopo da legislação de PT, e existe pouquíssima orientação no que diz respeito ao recebimento do exterior por tal natureza.
Com relação aos pagamentos de royalties, existe uma razão objetiva para a legislação excluir tais pagamentos da legislação de PT. Primeiramente, a remessa para tais pagamentos está sujeita a registro dos contratos com o Banco Central do Brasil e o Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI). Em segundo lugar, a dedutibilidade está limitada aos percentuais previstos na Portaria 436/1958 do Ministério das Finanças, que determina os percentuais máximos de royalties para marcas e know-how para vários setores. Em termos práticos, tais percentuais permanecem inalterados desde 1958, e a remessa também é limitada, claramente resultando em dupla tributação ou, em alguns casos, oportunidade para planejamentos tributários agressivos (caso o percentual arm's length seja inferior do que o percentual preconizado na Portaria).
Por outro lado, o país parece ignorar o fato de que a Propriedade Intelectual pode ser gerada no Brasil, especialmente após a criação de incentivos fiscais no país (Lei n. 11.196/05, a Lei do Bem), e ainda é possível transferir a Propriedade Intelectual para outro país com custo mais 15% e atender o método do CAP. Aqui, caso a tecnologia seja relevante e permita à parte relacionada no exterior auferir um lucro considerável, não existem instrumentos para as autoridade brasileiras exigirem a cobrança de um royalty mínimo que seja proporcional ao lucro gerado no exterior, por exemplo.
Também é bastante difícil, neste caso, testar transações com intangíveis de maneira geral, considerando que os métodos brasileiros não permitem a utilização de um Profit Split ou um Transaction Net Margin Method, normalmente utilizados para este tipo de teste no exterior. Isso normalmente impacta a forma como grupos multinacionais estão estruturados, forçando-os a constituir empresas de distribuição no Brasil, e na maioria das vezes "itemizando" o intangível, ao invés de simplesmente dividir a lucratividade entre a entidade que desenvolve o intangível e a entidade que o comercializa, segundo uma análise de riscos e funções.
Serviços intragrupo e acordos de cost sharing
O Brasil não possui uma metodologia específica para testar serviços intragrupo – que devem ser tratadas das mesmas formas que qualquer outro tipo de operação. Por outro lado, a OCDE reconhece que deveria existir uma remuneração para compensar empresas do grupo que desenvolvem parte do processo de produção, ou até funções de baixo valor agregado ou de back-office, o que representa claramente um gap na legislação de PT.
Desde 2012 o Brasil vem emitindo Soluções de Consulta ou Soluções de Divergência onde reconhecem a possibilidade de uma companhia brasileira participar de um acordo de cost sharing (CSA) ou de cost contribution (CCA). De certa forma, as autoridades fiscais entendem que custos ou despesas pagos no contexto de um CSA ou CCA estão relacionados com um reembolso, e caso pagos sem mark-up não deveriam sujeitar-se a retenção na fonte e nem às regras de preços de transferência. A dedutibilidade é permitida. Porém, as Soluções de Consulta mais recentes contradizem às anteriores, tornando o cenário mais incerto.
Recentemente, as cortes brasileiras decidiram em favor dos contribuintes, permitindo que remessas no contexto de um CSA ou de um CCA fossem efetuadas sem a retenção na fonte.
No relatório-conjunto da OCDE-RFB, as autoridades brasileiras reconhecem a necessidade de uma legislação mais clara e específica para resolver as disputas que surgirem neste contexto.
Operações Financeiras
O Brasil também apresenta um conjunto de regras bastante interessante no que diz respeito às operações financeiras. Até 2012, não existia obrigação de teste de PT num financiamento entre partes relacionadas se o contrato estivesse registrado no Banco Central. No mesmo ano, o Brasil introduziu regras para verificação de taxas de juros, sendo as taxas de mercado dos títulos soberanos brasileiros em dólares (para taxas predeterminadas de empréstimos em dólares), em reais (para taxas predeterminadas de empréstimos em reais), ou a taxa Libor de 6 meses em todos os outros casos. Um spread fixo de 3,5% deve ser adicionado em todos os pagamentos de juros ao exterior, e um spread mínimo de 2,5% deve ser adicionado no caso de recebimento de juros do exterior.
O Brasil também possui regras de subcapitalização, com uma proporção dívida-capital de 2:1, ou de 0,3:1 nos casos de paraísos fiscais ou regimes fiscais privilegiados.
Não existem regras específicas para operações financeiras, como o captive insurance, as operações de concessão de garantia (sendo que neste caso entendemos que o método PIC poderia ser utilizado), o cash pooling e operações de hedging.
Conclusões
Como pode-se observar, as metodologias brasileiras de PT fornecem segurança jurídica com as margens fixas e a liberdade de escolha do método. Porém, ainda deixam pouco espaço para resolver problemas de dupla tributação, ou até mesmo quando a operação não puder ser testada respeitando a sua realidade econômica. O Brasil já reconheceu que suas regras irão requerer uma revisão profunda se o país desejar aderir mesmo à OCDE. Mais importante, o país parece entender que as regras de PT existentes são um bloqueador contra uma maior inserção global do país. Caso o regime político atual continue, será uma questão de "quando", e não "se" o país irá mesmo se juntar à OCDE, então podemos esperar alterações no regime de preços de transferência num futuro próximo. Esteja preparado!
Francisco Lisboa Moreira |
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Sócio Bocater Camargo Costa e Silva Rodrigues Advogados Tel: +55 11 2198 2800 Possui mais de 18 anos de atuação profissional, incluindo 8 anos na KPMG e 10 como sócio da área tributária de renomados escritórios. Experiência abrangente na estruturação de operações societárias, planejamento tributário e tributação internacional. Mestrando em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Também possui o LLM pela New York University School of Law – NYU (2014). Foi o relator para o Brasil, no Congresso Regional Latinoamericano da International Fiscal Association de Lima/Peru em 2016, com o tema 01 – "Influencia del Plan BEPS en las reglas de Precios de Transferencia de América Latina". |
Felipe Thé Freire |
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Associado Bocater Camargo Costa e Silva Rodrigues Advogados Tel: +55 11 2198 2800 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN (2013). Pós-Graduado em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – FGV Direito SP – GVlaw (2015). Mestrando (LL.M.) em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Amsterdã – UvA e pelo International Bureau of Fiscal Documentation – IBFD (2019/2020). Antes de ingressar como associado no escritório, atuou na auditoria e consultoria tributária de Big Four, com foco no atendimento a instituições do mercado financeiro e de capitais (Tax – Financial Services). |