Quase 25 anos se passaram desde a introdução do limite de 30% para a compensação de prejuízos fiscais, mas sua aplicação em casos de extinção de empresas, inclusive em caso de incorporação, permanece controversa. Em março de 2020, o Tribunal Superior de Justiça (STJ) está a um voto de uma decisão que pode impactar significativamente as reestruturações, caso conclua que o limite de 30% não deve ser aplicado em casos de encerramento de empresas.
O limite de 30% para a compensação de prejuízos fiscais no cálculo dos tributos incidentes sobre a renda das pessoas jurídicas no Brasil é cercado por diversas controvérsias desde sua introdução em 1995 e de sua posterior extensão a todos os períodos fiscais em 1996. Antes da criação de referido limite, o valor total dos prejuízos fiscais poderia ser compensado dentro de um período de 4 anos. Tal prazo foi revogado quando o limite de 30% foi estabelecido.
O uso de todos os prejuízos fiscais remanescentes na extinção de uma empresa é um assunto relevante para incorporações e outras operações de reestruturação envolvendo empresas brasileiras que calculam os tributos sobre a renda de acordo com o sistema do lucro real, geralmente adotado por empresas de médio e grande porte.
Visão geral dos tributos sobre a renda das pessoas jurídicas no Brasil
Os lucros das empresas brasileiras estão sujeitos ao Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Apesar dos diferentes nomes e diversas espécies tributárias, tanto o IRPJ como a CSLL incidem sobre os lucros auferidos pelas empresas brasileiras calculados de forma semelhante.
O IRPJ e a CSLL podem ser calculados de acordo com três sistemas diferentes, denominados lucro real, lucro presumido e lucro arbitrado.
No lucro real, o lucro tributável é o lucro líquido constante das demonstrações financeiras da empresa, apurado de acordo com os princípios contábeis geralmente aceitos no Brasil (BR GAAP), sujeito a certos ajustes estabelecidos pela legislação tributária aplicável. De forma geral, o BR GAAP está alinhado aos International Financial Reporting Standards (IFRS), no entanto, para fins fiscais, as regras contábeis introduzidas após 2015 devem ser neutras. Além dos ajustes para garantir tal neutralidade fiscal, os principais ajustes correspondem a adições de custos e despesas indedutíveis de forma permanente ou temporária e a exclusões de receitas não tributáveis ou cuja tributação é diferida para período futuro.
O cálculo do IRPJ e da CSLL de acordo com o lucro real pode resultar na apuração de prejuízo fiscal e base negativa de CSLL (aqui referidos como prejuízos fiscais). Desde 1995, os prejuízos fiscais podem ser utilizados sem qualquer restrição temporal e podem ser compensados até o limite de 30% do lucro tributável de um determinado período. O aproveitamento dos prejuízos fiscais para compensar lucros passados não é permitido sob as regras brasileiras.
Algumas outras restrições específicas se aplicam à compensação de prejuízos fiscais:
Prejuízos fiscais não operacionais (i.e., resultados negativos decorrentes da alienação de ativos fixos, investimentos e intangíveis) devem ser controlados separadamente dos prejuízos fiscais operacionais e podem ser compensados apenas contra lucros não operacionais, respeitado o limite de 30%;
A compensação não é permitida se, entre a data da apuração dos prejuízos fiscais e a data da compensação, ocorrer, cumulativamente, uma mudança no controle societário da empresa e no ramo de atividade da empresa;
Em caso de cisão, a cindida não pode compensar os prejuízos fiscais proporcionais à parte cindida de seu patrimônio líquido; e
Os prejuízos fiscais de uma empresa incorporada não podem ser usados pela empresa incorporadora.
O lucro real pode ser calculado trimestralmente ou anualmente. A maioria das empresas opta pela apuração anual, considerando também o efeito do limite de 30% para a compensação de prejuízos fiscais. De acordo com o cálculo trimestral, os prejuízos fiscais de um determinado trimestre podem ser usados para compensar os lucros dos trimestres futuros limitados a 30% dos lucros tributáveis de cada trimestre, mesmo em caso de trimestres de um mesmo ano.
Existem algumas situações em que a adoção do lucro real é obrigatória, inclusive quando a receita total da empresa no ano anterior exceder R$ 78 milhões e se a empresa auferir lucros, rendimentos ou ganhos de capital oriundos do exterior.
Em comparação com o lucro real, não existem prejuízos fiscais no lucro presumido e no lucro arbitrado, pois ambos são calculados com base em um percentual da receita bruta da empresa acrescido de outras receitas e de ganhos de capital, sem levar em consideração os custos e as despesas incorridos. O lucro presumido é um sistema de cálculo simplificado que pode ser escolhido por empresas que não se enquadram em nenhuma das situações em que o lucro real é obrigatório. O lucro arbitrado é geralmente imposto pelas autoridades fiscais no caso de falta de cumprimento das obrigações acessórias aplicáveis ao lucro real e ao lucro presumido (como aquelas relativas à escrituração contábil), calculado em percentuais mais elevados do que aqueles aplicados no lucro presumido.
Em qualquer um dos sistemas, o IRPJ é geralmente devido à alíquota de 15%, acrescido de uma alíquota adicional de 10% aplicável à parcela da base de cálculo que exceder R$ 240.000 por ano (ou R$ 20.000 por mês, no caso de períodos-base inferiores a um ano). A CSLL é devida à alíquota de 9%, exceto para entidades financeiras sujeitas à alíquota de 15%.
Controvérsias sobre o limite de 30%
Como mencionado, o limite de 30% sempre foi um assunto controverso. As discussões se concentraram principalmente (i) no direito dos contribuintes de usar prejuízos fiscais incorridos no passado para reduzir a tributação no futuro e (ii) na inconstitucionalidade do limite, considerando o conceito de renda para fins fiscais. Nesse sentido, contribuintes e doutrinadores alegaram que o limite de 30% levaria à tributação de valores superiores à renda. Essa alegação tem como base o entendimento de que o lucro tributável só existe após a absorção total dos prejuízos fiscais. De acordo com essa posição, o limite resultaria na tributação do patrimônio da empresa.
A controvérsia sobre o alinhamento do limite de 30% aos princípios e regras constitucionais foi submetida à análise do Supremo Tribunal Federal (STF) em dois processos distintos.
No primeiro, julgado em 2009 no curso do Recurso Extraordinário nº 344.994/PR (RE 344.994), a análise foi limitada ao IRPJ, não abrangendo a CSLL. Nessa decisão, o STF concluiu por maioria de votos que a compensação de prejuízos fiscais acumulados originados de exercícios anteriores é um benefício fiscal concedido ao contribuinte e, como tal, poderia ser revisto e alterado pelo Governo Federal. Em tal decisão, prevaleceu o entendimento de que o contribuinte não tem o direito de usar prejuízos fiscais. A decisão também se baseou na posição de que o lucro tributável é o lucro apurado anualmente e, assim sendo, os resultados dos exercícios anteriores seriam irrelevantes.
A segunda decisão sobre o assunto foi proferida pelo STF em 2019 no julgamento do Recurso Extraordinário nº 591.340/SP (RE 591.340), que teve como objeto a aplicação do limite de 30% à CSLL. Tal decisão reafirmou que o limite para a compensação de prejuízos fiscais é constitucional. No RE 591.340 foi reconhecida a existência de repercussão geral da questão constitucional discutida e, portanto, a decisão deve ser seguida pelas instâncias judiciais inferiores ao analisar o mesmo assunto.
É importante notar que o RE 344.994 e o RE 591.340 não analisaram a constitucionalidade do limite de 30% em casos de extinção da empresa. O fato de que a extinção não foi objeto de análise consta expressamente da decisão no RE 591.340.
O impacto do limite de 30% na extinção
Quando a empresa continua a existir, o limite de 30% adia o uso dos prejuízos fiscais, mas seu uso permanece possível. Diversamente, o limite de 30% no cálculo final do IRPJ e da CSLL efetuado por uma empresa em consequência de sua extinção pode impossibilitar o uso de prejuízos fiscais. De fato, se o saldo de prejuízos fiscais exceder 30% do lucro tributável apurado no cálculo final do IRPJ e CSLL, o valor dos tributos devidos na extinção será mais elevado e o valor dos prejuízos fiscais excedentes não poderá mais ser utilizado.
O mesmo efeito é esperado no caso de uma incorporação, considerando o limite de 30% no cálculo final do IRPJ e CSLL da empresa incorporada, bem como a perda do saldo remanescente dos prejuízos fiscais da empresa incorporada, o que impede a empresa incorporadora de utilizá-los.
O voto do Ministro do STF Luiz Fux no RE 591.340 fez referência a tal situação ao apontar que o limite de 30% por si só não tornaria impossível a compensação de prejuízos fiscais, o que ocorreria, todavia, no caso de extinção de uma empresa.
A compensação ilimitada dos prejuízos fiscais na extinção pode resultar em uma redução dos valores finais de IRPJ e CSLL devidos. Além disso, no caso de uma incorporação, pode resultar na apuração de créditos de IRPJ e de CSLL pela empresa incorporada que poderiam ser utilizados pela empresa incorporadora.
Jurisprudência administrativa e judicial
Mesmo que a hipótese de extinção da empresa não tenha sido analisada pelo STF, o julgamento do RE 344.994 afetou as decisões na esfera administrativa tributária federal.
Antes da decisão do STF no RE 344.994, o antigo Conselho de Contribuintes e a Câmara Superior de Recursos Fiscais entenderam em vários casos que o limite de 30% não deveria ser aplicado na extinção da empresa. Tais posições foram baseadas principalmente na nota explicativa que acompanha a medida provisória que introduziu o limite de 30%, segundo a qual o limite assegurava um nível relevante de receita tributária para o Governo Federal, sem eliminar o direito dos contribuintes de compensar prejuízos fiscais. A nota permite entender que o limite deve adiar a compensação, mas não a impedir.
Não obstante, a jurisprudência administrativa mudou gradualmente, tendo em vista a decisão do STF no RE 344.994, assim como no contexto da substituição do Conselho de Contribuintes pelo Conselho de Administração de Recursos Fiscais (CARF). De acordo com a posição atual adotada pelo CARF, o limite de 30% se aplica aos casos de extinção das empresas.
Nos tribunais inferiores federais, existem precedentes a favor do contribuinte, concluindo que o limite de 30% não é aplicável às empresas em consequência de sua extinção.
Decisão pendente no STJ
Neste contexto, a análise do tema pelo STJ gera a expectativa de uma nova oportunidade de reverter o efeito adverso do limite de 30%, pelo menos para as empresas que deixarem de existir.
O STJ está analisando esta questão no Recurso Especial nº 1.805.925 (Resp 1.805.925), que se refere ao uso ilimitado de prejuízos fiscais na incorporação de uma empresa. Em dezembro de 2019, quatro dos cinco Ministros da Primeira Turma da Primeira Seção do STJ apresentaram seus votos e chegaram a um empate. Dois Ministros entenderam que a compensação de prejuízos fiscais é um benefício fiscal e que o limite de 30% pode ser aplicado uma vez que não há regra que autorize expressamente a compensação ilimitada na extinção. De outro modo, dois Ministros votaram a favor do contribuinte, alegando que o limite na extinção leva à tributação do patrimônio das empresas. Espera-se que o último Ministro vote em 2020 e decida o resultado do empate.
Atualmente, a posição que a Primeira Turma da Primeira Seção do STJ assumirá no Recurso Especial ainda é incerta. Além disso, a decisão do STJ pode não resolver definitivamente o assunto, pois as partes do Resp 1.805.925 apresentaram recursos extraordinários ao STF em paralelo, o que pode gerar análise adicional do tema.
Considerações finais
O efeito adverso do limite de 30% em caso de extinção da empresa, inclusive em caso de incorporação e outras operações de reestruturação, é claro e não foi abordado pelo STF ao decidir que a compensação de prejuízos fiscais é um benefício fiscal.
Agora, uma decisão do STJ pode ser a primeira decisão proferida por um tribunal superior sobre o assunto e pode levar a uma análise pelo STF sob uma perspectiva diferente.
Este é certamente um assunto a ser acompanhado de perto pelos contribuintes, especialmente aqueles envolvidos em operações de reestruturação passadas e futuras.
Ana Lúcia Marra |
|
---|---|
|
Sócia Machado Associados Tel: +55 11 3093 4833 Ana Lucia Marra é sócia do Machado Associados, com 23 anos de experiência em consultoria na área tributária, atuando na gestão de projetos e equipes para atendimento de empresas multinacionais no Brasil e no exterior de diversos setores. Ela é especializada em consultoria tributária na área de tributos diretos e tributação internacional para empresas brasileiras e estrangeiras de diversos setores, atuando na avaliação de impactos fiscais de operações/estruturas e na identificação de alternativas para otimização da carga tributária e mitigação de riscos fiscais. |
Stephanie Makin |
|
---|---|
|
Sócia Machado Associados Tel: +55 11 3093 4834 Stephanie Makin é sócia na área de tributação internacional do Machado Associados. Ao longo dos anos, Stephanie trabalhou em grandes reestruturações societárias, fusões e aquisições, investimentos estrangeiros no Brasil e investimentos brasileiros no exterior. Stephanie tem um excelente perfil internacional e profundo conhecimento da legislação de impostos diretos. |