Introdução
Uma das principais preocupações dos governos ao redor do mundo diz respeito a garantir que os negócios paguem sua parcela justa de tributos. isso inclui contribuições em relação às atividades denominadas serviços digitais, que são desenvolvidas por meio de plataformas tecnológicas.
Sem surpresa, isso não é algo simples de alcançar. A maioria desses serviços pode ser realizada em qualquer lugar do mundo, alcançando clientes em todos os tipos de locais.
Para os fins de nossa análise, é útil identificar os diferentes tipos de negócios digitais, da seguinte maneira:
Intermediação digital de bens tangíveis, que são mercados de todos os tipos de produtos, incluindo alimentos, roupas, eletrônicos, livros, etc.
Intermediação digital de serviços físicos, na qual os meios digitais servem para conectar prestadores de serviços com clientes, como é o caso de plataformas que intermediam aluguel de casas, serviços de transporte, etc.
Fornecedor / intermediário digital de bens intangíveis, incluindo streaming, aplicativos, software, arquivos, etc.
No primeiro e no segundo casos, é difícil identificar a localização do intermediário, mas, como há fornecimento "tradicional" de bens e serviços, esses itens estão sujeitos à tributação, bem como a seus fornecedores.
No entanto, no terceiro caso, é difícil identificar a localização desse provedor de serviços digitais ou intermediário, que pode estar operando em qualquer lugar do mundo. Em vários casos, o "ponto de contato" com esses fornecedores / intermediários com um determinado cliente são apenas a página eletrônica e o cartão de crédito do cliente.
Em vista desse cenário, autoridades de diferentes países estão estudando como garantir receita mínima para o país em que o cliente está situado. A OCDE também está avançando estudos sobre uma proposta para alinhar a tributação da economia digital, como parte do relatório da Ação 1 do BEPS.
Em janeiro de 2020, a OCDE publicou "Statement by the OECD/G20 Inclusive Framework on BEPS on the Two-Pillar Approach to Address the Tax Challenges Arising from the Digitalisation of the Economy ".
Nessa publicação, a OCDE comenta que o Pilar 1 do trabalho pretende estabelecer critérios para determinar o nexo econômico com os países, a fim de alocar as receitas tributárias de grupos multinacionais que desenvolvem negócios digitais. A OCDE esclarece que "On Pillar One, the Policy Note recognised that in the balance are: the allocation of taxing rights between jurisdictions; fundamental features of the international tax system, such as the traditional notions of permanent establishment and the applicability of the arm's-length principle; the future of multilateral tax co-operation; the prevention of unilateral measures; and the intense political pressure to tax highly digitalised MNEs.".
O Pilar 2, também conhecido como proposta Global Anti-Base Erosion (GloBE), "focuses on the remaining BEPS issues and seeks to develop rules that would provide jurisdictions with a right to 'tax back' where other jurisdictions have not exercised their primary taxing rights or the payment is otherwise subject to low levels of effective taxation.".
O Brasil esteve envolvido na discussão, pois faz parte do BEPS Inclusive Framework (IF) e, por enquanto, o Brasil não criou nenhum imposto específico sobre serviços digitais.
Não obstante, isso não significa que não haja tributação sobre negócios digitais no Brasil. De fato, existem tributos no Brasil que desempenham o mesmo papel que os impostos sobre serviços digitais. O objetivo deste artigo é fornecer uma visão geral da tributação de empresas digitais no Brasil.
Tributando negócios digitais no Brasil
Ao pensar nos grandes grupos multinacionais que operam na indústria digital – como Amazon, Google, Facebook, Uber, Airbnb, Netflix, dentre outros – a maioria deles possui subsidiárias no Brasil para desenvolver suas atividades para clientes locais.
Uma das discussões mais importantes diz respeito à questão de saber se os serviços prestados por empresas de tecnologia estão sujeitos à tributação pelo ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual ou Intermunicipal e Prestação de Serviços de Comunicação) ou ISS (Imposto sobre Serviços). Esta é uma discussão que não existe na maioria dos outros países, pois eles normalmente cobram um único imposto sobre vendas ou imposto sobre valor agregado (IVA). No Brasil, existem efetivamente cinco impostos que desempenham um papel semelhante ao IVA, que são: (a) duas contribuições sociais sobre as receitas (PIS e COFINS); (b) imposto sobre produtos industrializados (IPI); (c) ICMS; e (d) ISS.
Em relação ao ICMS, trata-se de um imposto geralmente cobrado sobre a circulação de mercadorias / mercadorias ('mercadorias' = res in mercancia). A Constituição Federal incluiu no âmbito do ICMS (a) prestação de serviços de transporte interestadual ou intermunicipal; e (b) prestação de serviços de comunicação.
No mercado da tecnologia, as discussões constantes são em relação à classificação das atividades da empresa, que podem ser: (a) fornecimento de serviços de comunicação; (b) fornecimento de mercadorias digitais/intangíveis; ou (c) prestação de outros serviços.
Nos dois primeiros casos, os governos estaduais poderiam impor o ICMS. Por outro lado, no terceiro caso, poderia haver a incidência do ISS.
O ISS pode ser potencialmente cobrado por todos os outros serviços – ou seja, todos os serviços que não estão no escopo do ICMS. Os serviços efetivamente tributáveis são aqueles incluídos na "lista de serviços" da Lei Complementar nº 116/2003. Todos os serviços que não estão no escopo do ICMS e não estão incluídos nesta lista estão isentos do ISS.
Assim, nos serviços digitais, constantemente tem-se que analisar se esses serviços são (a) caracterizados como "prestação de serviços de comunicação"?; (b) se não, em que item da lista de serviços estão incluídos?
Para fins de ICMS, o conceito é que "fornecer serviços de comunicação" é diferente de se comunicar. Quem fornece esses serviços é um intermediário do processo de comunicação, do relacionamento entre o remetente de uma determinada mensagem e seu destinatário, e não o proprietário, o remetente ou o destinatário da mensagem.
Os Estados já decidiram impor o ICMS sobre softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e intangíveis semelhantes, entendendo que esses itens são "bens intangíveis" – portanto, mesmo sendo intangíveis na visão do estado, eles se encaixam no conceito de mercadorias.
Em 2015, os Estados concordaram, por meio do Convênio CONFAZ nº 181/2015, em conceder uma redução para 5% do ICMS em transações com software, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e similares, disponibilizados por qualquer meio, inclusive por transferência eletrônica de dados.
Vejamos mais sobre essas discussões relativas a ICMS versus ISS.
Taxing digital businesses by ISS
Os municípios impõem ISS sobre uma série de serviços de tecnologia definidos pela Lei Complementar nº 116/2013:
1 – Serviços de informática e congêneres.
1.01 – Análise e desenvolvimento de sistemas.
1.02 – Programação.
1.03 – Processamento, armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação, entre outros formatos, e congêneres.
1.04 – Elaboração de programas de computadores, inclusive de jogos eletrônicos, independentemente da arquitetura construtiva da máquina em que o programa será executado, incluindo tablets, smartphones e congêneres. (Redação dada pela Lei Complementar nº 157, de 2016)
1.05 – Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação.
1.06 – Assessoria e consultoria em informática.
1.07 – Suporte técnico em informática, inclusive instalação, configuração e manutenção de programas de computação e bancos de dados.
1.08 – Planejamento, confecção, manutenção e atualização de páginas eletrônicas.
1.09 – Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei no 12.485, de 12 de setembro de 2011, sujeita ao ICMS).
Além desses serviços, outra situação sujeita à ISS e significativa para os negócios digitais está relacionada à intermediação, pois esses serviços de qualquer tipo também estão sujeitos à ISS.
As alíquotas do ISS variam de acordo com o município e o tipo de serviço, entre 2% e 5%. Por exemplo, no caso de São Paulo, os serviços de TI estão sujeitos a 2,9% e os serviços de intermediação são tributados a 5%
Intermediação ou serviços digitais?
Os meios digitais aumentaram a proximidade entre compradores e vendedores, fornecedores e consumidores. Em vários países, não é difícil encontrar demandas que antes estavam ocultas e que explodiram desde a criação de novos dispositivos e funções tecnológicas.
No passado, quando alguém queria reservar um carro particular, era necessário procurar esse tipo de serviço, ligar para uma empresa adequada e reservar o carro. Geralmente, o carro reservado teria que ser para o dia ou pelo menos algumas horas após a ligação. Cada vez mais, isso se tornou apenas uma questão de abrir o aplicativo de reserva de carros – como Uber, Cabify etc. – e solicitar um carro que pode chegar em alguns minutos.
Várias pequenas empresas ganharam visibilidade no mercado com os chamados mercados, seguindo os primeiros passos da Amazon. Empresas de todos os tamanhos utilizam intermediários digitais para ter acesso a clientes que, no passado, eram impossíveis ou muito difíceis de alcançar.
Nesse cenário, no qual os meios digitais servem como intermediários entre o cliente e os produtos/serviços físicos, fica claro que as empresas de tecnologia estão prestando serviços de intermediação aos fornecedores. Portanto, Uber e Cabify não estão prestando serviços de transporte, mas servindo como intermediário entre o cliente e os motoristas. Fica claro, nesses casos, que se tratam de serviços sujeitos ao ISS, e não ao ICMS.
Licenciamento de software
Em relação ao licenciamento de software, os Estados afirmam que existe ICMS, uma vez que os softwares são caracterizados como bens intangíveis e mercadorias intangíveis e, como tal, estão sujeitos ao ICMS. Os Estados, por meio do Convênio nº 106/2017, regulamentaram o ICMS sobre mercadorias intangíveis. Essa legislação estabelece que estão sujeitos ao ICMS todas as operações com bens e mercadorias digitais, tais como softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, que sejam padronizados, ainda que tenham sido ou possam ser adaptados, comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados, exceto as operações entre empresas que não sejam o consumidor final, já que a ideia é que o ICMS incida sobre as operações com o consumidor. O ICMS deve ser recolhido ao estado no qual se localize esse consumidor.
É claro que os Estados consideram que todas as vendas do que definem como "bens ou mercadorias digitais" estão sujeitas ao ICMS e podem atribuir responsabilidade tributária não apenas aos vendedores de bens digitais, mas também a intermediários, como os chamados market places, intermediários financeiros e empresas de cartão de crédito.
Por outro lado, os municípios afirmam que o licenciamento de software não pode ser visto como uma venda de mercadorias, pois não há transferência de título, mas apenas uma permissão para o cliente ter o direito de usar um software. A licença de uso – que eles alegam estar presente em qualquer software ou aplicativo disponibilizado aos consumidores – está sujeita ao ISS, e não ao ICMS. A Lei Complementar nº 116/2013 determina que a licença de uso do software é considerada como serviço e está sujeita à ISS.
No meio dessa discussão, existem os contribuintes que desejam pagar o imposto adequado, mas ficam confusos quanto ao pagamento de ICMS aos estados ou ISS aos municípios. Além disso, o descumprimento dessas obrigações está sujeito a penalidades severas e, dependendo da cidade ou estado, a multa pode atingir 100% do valor da transação.
Em um caso histórico (RE 176.626-3), em 1998, o Supremo Tribunal Federal definiu que 'software de prateleira' se encaixava no conceito de bens ou mercadorias, enquanto 'software de cópia única' precisava ser tratado como serviço, na medida em que fosse adaptado a um usuário em particular. O Supremo Tribunal decidiu o seguinte em relação ao licenciamento de software, que eles chamaram de 'software de cópia única':
Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de "licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador" – matéria exclusiva da lide –, efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo – como a do chamado "software de prateleira" (off the shelf) – os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio.
É justo lembrar que, na época em que o STF decidiu dessa maneira, o software de prateleira era realmente "de prateleira", pois os fornecedores costumavam vender software inserido em mídia física, como disquetes ou CDs, de tal maneira que o Supremo Tribunal faz referência ao 'corpus mechanicum', isto é, um corpo físico contendo programas de computador.
Devido à falta de meios materiais nas vendas de software e outros programas ou arquivos digitais, muitos contribuintes estão discutindo judicialmente que estão sujeitos ao ISS, e não ao ICMS. Porém, por enquanto, não há uma definição clara dos tribunais superiores – o Tribunal Superior de Justiça e o Supremo Tribunal – de tal maneira que os contribuintes estejam sujeitos a essa incerteza e precisem decidir se cumprem as leis municipais ou estaduais.
Streaming de músicas e vídeos
Outro campo de discussão em relação ao ISS versus o ICMS é a disponibilização por meio eletrônico (streaming) de músicas e vídeos.
Os Estados argumentam que as empresas que desenvolvem esse tipo de negócio devem pagar o ICMS porque prestam serviços de comunicação. Os municípios argumentam que estão licenciando conteúdo para o consumidor, que nunca assume a propriedade, mas sim uma permissão para ouvir e assistir por um tempo, em retribuição por uma taxa.
A Lei Complementar nº 116/2013, que regula o ISS, estabelece a transmissão como parte dos serviços sujeitos ao ISS. Há exceção em relação às TVs a cabo, cujas atividades estão sujeitas à permissão da autoridade de telecomunicações (ANATEL) e à tributação pelo ICMS.
Os Estados argumentam que a transmissão é exatamente a evolução das TVs a cabo, e o fato de serem baseadas no acesso à Internet não exclui sua caracterização como serviços de comunicação.
Esse é outro debate que os tribunais superiores precisam definir para dar segurança aos contribuintes. Enquanto isso, devido à Lei Complementar nº 116/2013, a maioria dos contribuintes que desenvolvem streaming no Brasil está pagando ISS.
Prestação de serviços digitais a partir do exterior
Os serviços prestados por empresas não residentes – serviços digitais ou não digitais – estão sujeitos à alta tributação no Brasil. Os tributos existentes desempenham o papel do que outros países estão criando e chamando de imposto sobre serviços digitais (digital service tax).
Sempre que uma pessoa física ou jurídica paga qualquer tipo de serviço prestado por empresas não residentes, há obrigação de reter (a) imposto de renda (IRFonte) de 15%; e (b) ISS para o município em que o pagador se encontra, normalmente de 5% (a taxa depende do tipo de serviço e do município).
Além disso, o tomador/contratante pessoa jurídica estará sujeito à tributação por (c) contribuições sociais na importação (PIS/COFINS-Importação), a uma alíquota de 9,25%, calculadas por dentro; e (d) Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico sobre Royalties e Serviços (CIDE/Royalties) à alíquota de 10%.
De maneira geral, considerando os valores suportados pelos prestadores e contratados, a tributação na importação de qualquer tipo de serviço chega a 40%.
Em relação ao IRFonte, existe a possibilidade de se evitar essa retenção se o prestador de serviços estiver localizado em um país com um tratado de dupla tributação com o Brasil. Além disso, os serviços prestados não podem se enquadrar no conceito de 'serviços técnicos' para que seja possível pleitear a aplicação do artigo 7 dos tratados, que determina a tributação pelo imposto de renda somente no país de residência. No entanto, no caso de serviços técnicos, na maioria dos tratados em vigor no Brasil, o imposto de renda é cobrado com base no Artigo 12 – royalties – que permite a tributação nos dois países.
Portanto, não há razão para criar impostos locais sobre serviços digitais quando o Brasil impõe tantos tributos sobre serviços em geral, incluindo os digitais.
Em relação à tributação de serviços digitais, pode haver ausência de tributação quando são pessoas físicas pagando por esses serviços, uma vez que, na maioria dos casos eles não têm conhecimento de suas obrigações de reter e recolher o IRFonte e ISS. Por outro lado, as autoridades também não começaram a fiscalizar essas pessoas, nem impuseram responsabilidade a intermediários financeiros, como administradores de cartão de crédito ou débito.
Conclusões
As empresas brasileiras que operam na economia digital estão sujeitas à incerteza quanto ao pagamento de ICMS ou ISS em seus negócios, a menos que seja o caso de intermediação, caso em que fica claro que se aplica o ISS.
Empresas estrangeiras com clientes locais, apesar da falta de imposto sobre serviços digitais no Brasil, estão sujeitas à tributação na fonte por ISS e IRFonte, e as empresas locais que contratam esses serviços também estão sujeitas a uma tributação significativa, representada por PIS/COFINS-Importação e CIDE/Royalties.
Com todas essas tributações e disputas tributárias em vigor, é improvável que o Brasil adote alguma das recomendações da OCDE com base nos Pilares 1 e 2 durante o futuro a curto prazo, pois o Brasil já tem mecanismos para garantir a receita tributária obtida com a economia digital.
Ana Cláudia Akie Utumi |
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Sócia Utumi Advogados Tel: +55 11 4118 2323 Ana Cláudia Akie Utumi é sócia-fundadora de Utumi Advogados, com mais de 25 anos de experiência na área tributária, 17 desses como head da área em um dos maiores escritórios full service do Brasil. Atua nas áreas de consultoria e de contencioso tributário, assessorando famílias empresárias e empresas nacionais e multinacionais de variados setores em questões tributárias brasileiras e internacionais. |