A alta carga tributária imposta pelo Brasil em remessas ao exterior relativas à importação de serviços, assim como a quantidade de tributos cobrados, as diversas regras fiscais e a interpretação das autoridades fiscais acerca da aplicação dos Tratados para Evitar a Dupla Tributação (TDT), são amplamente conhecidas como fatores que causam dificuldades para grupos multinacionais com presença no Brasil.
O Brasil impõe até seis tributos sobre essas remessas os quais são regulamentados por distintas legislações federais e municipais, que contribuem para o cenário contencioso envolvendo a importação de serviços no Brasil, incluindo discussões acerca do imposto de renda retido na fonte (IRRF).
Os efeitos dos TDTs assinados pelo Brasil para reduzir ou eliminar o IRRF cobrado nas remessas para contraprestação de serviços e o momento no qual o IRRF deve ser recolhido tem sido objeto de controvérsias. Em 2020, esses aspectos importantes relativos à incidência do IRRF sobre pagamentos de serviços foram analisados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), trazendo novas perspectivas a serem consideradas pelos grupos multinacionais.
Efeitos dos tratados para evitar dupla tributação sobre o IRRF nas remessas a título de serviços
Em dezembro de 2020, a Segunda Turma do STJ proferiu uma decisão, ao analisar o Recurso Especial (REsp) 1.759.081 – SP, sobre a qualificação de remessas ao exterior relativas a serviços técnicos para fins dos TDTs assinados pelo Brasil, que possui o potencial de alterar o cenário atual relativo à incidência de IRRF sobre essas remessas face aos TDTs e adicionar um outro capítulo nesta longa discussão.
Antecedentes da decisão
Historicamente, as autoridades fiscais brasileiras costumavam sustentar que o IRRF deveria incidir sobre remessas de serviços técnicos ao exterior, com base na interpretação de que essas remessas seriam enquadradas no artigo 21 (outros rendimentos) dos TDTs. Tradicionalmente, o artigo 21 dos TDTs assinados pelo Brasil permite que ambos os Estados Contratantes tributem as remessas. Surpreendentemente, esta posição foi defendida pelas autoridades fiscais brasileiras mesmo nos casos em que o TDT específico não tinha um artigo sobre “outros rendimentos”.
Em maio de 2012, a decisão proferida pelo STJ sobre o assunto (REsp 1.161.467 – RS) alterou significativamente o cenário e a posição das autoridades fiscais brasileiras. Os Ministros do STJ concluíram que o Brasil não estava autorizado a tributar os pagamentos tendo como fundamento o artigo 7 (Lucros das Empresas) dos TDTs. O principal argumento considerado pelo STJ na sua decisão foi o de que as receitas obtidas com a prestação de serviços estariam incluídas no conceito de lucros, à luz da legislação nacional.
Pouco tempo depois, a Receita Federal do Brasil (RFB) editou o Ato Declaratório Interpretativo n° 5/14 (ADI 5/14), segundo o qual as remessas relativas à prestação de serviços técnicos a países com os quais o Brasil celebrou um TDT devem ser enquadradas no:
Artigo 12 (‘royalties’), se o protocolo do TDT expressamente incluir serviços técnicos e assistência técnica no conceito de royalties. O artigo 12 dos TDTs assinados pelo Brasil segue a Convenção Modelo das Nações Unidas para Evitar a Dupla Tributação, permitindo que o Brasil exija IRRF sobre as remessas de royalties para beneficiários nos Estados contratantes;
Artigo 14 (Profissões independentes), se (a) a prestação do serviço depender de qualificação técnica de um indivíduo ou de um grupo de pessoas, (b) o TDT autorizar a tributação no Brasil e (c) artigo 12 não for aplicável. O artigo 14 dos TDTs assinados pelo Brasil geralmente concedem ao Brasil o direito de tributar essas remessas em determinadas situações. Apesar de o artigo 14 ter sido eliminado da Convenção Modelo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil tem como política incluir este artigo nos TDTs assinados pelo País, e
Artigo 7, desde que os artigos 12 e 14 não sejam aplicáveis. Neste caso, o Brasil não estaria autorizado a cobrar o IRRF sobre as remessas, salvo se o prestador de serviços tiver um estabelecimento permanente no Brasil.
A maioria dos TDTs assinados pelo Brasil classificam serviços técnicos e assistência técnica como royalties para fins dos TDTs, sem trazer qualquer definição de serviços técnicos. Segundo a interpretação das autoridades fiscais, serviços técnicos são definidos como aqueles que dependam de conhecimentos técnicos especializados. Sob uma perspectiva prática, essa definição engloba quase todos os serviços, independentemente de qualquer transferência de tecnologia.
Apenas nos TDTs assinados recentemente, o Brasil passou a incluir a sua definição única e extremamente ampla de serviços técnicos (e.g., Protocolo do TDT com a Argentina assinado em 2017, TDT assinado com Singapura em 2018).
Desde a publicação do ADI 5/14, as autoridades fiscais brasileiras têm consistentemente reconhecido que o IRRF não deve incidir em pagamentos ao exterior quando o TDT não prevê expressamente que o serviço técnico e assistência técnica são enquadrados no artigo 12 (que é o caso da França, por exemplo), entendendo que as remessas estão abrangidas pelo artigo 7.
Apenas em situações específicas a RFB enquadrou pagamentos de serviços no artigo 14.
Um novo capítulo na discussão
No REsp 1.759.081 – SP, julgado pelo STJ em 18 de dezembro de 2020, o Tribunal foi instado a se manifestar acerca do enquadramento das remessas efetuadas por uma sociedade brasileira a uma sociedade espanhola relativas à prestação de serviços de engenharia e assistência administrativa nos artigos 7 (lucros), 12 (royalties) ou 14 (profissionais independentes) do TDT entre Brasil e Espanha.
O TDT firmado entre Brasil e Espanha é um dos tratados assinados pelo Brasil que expressamente classifica os serviços técnicos e a assistência técnica como royalties a que se refere o artigo 12. De acordo com este artigo, o Brasil poderia cobrar IRRF à alíquota máxima de 10% sobre os pagamentos efetuados para a Espanha (comparativamente à alíquota geral de 15%).
A definição de ‘serviços independentes’ prevista no artigo 14 inclui expressamente serviços de engenharia. Com base neste artigo, o Brasil estaria autorizado a tributar os pagamentos para a Espanha sem qualquer redução de alíquota.
Nos termos do artigo 7 dos TDTs, por outro lado, o Brasil não poderia tributar as remessas feitas à Espanha.
Ao analisar o caso, a instância judicial inferior (Tribunal Regional Federal da 3ª Região – TRF3) analisou os contratos celebrados entre as partes e concluiu que estes não previam qualquer transferência de tecnologia e, portanto, que as remessas para pagamento de serviços de engenharia e assistência administrativa não deveriam ser classificados como royalties para fins do TDT.
Na opinião do TRF3, os contratos previam a mera prestação de serviços por parte da sociedade espanhola e, portanto, os pagamentos deveriam ser enquadrados no artigo 7 do TDT e poderiam ser tributados apenas na Espanha. A posição do TRF3 neste caso é consistente com outras decisões proferidas anteriormente pelo mesmo tribunal, sempre baseadas na posição do STJ no caso julgado em 2012 (REsp 1.161.467 – RS) e em casos julgados pelo STJ após essa data.
A aplicação do artigo 14 não foi examinada pelo TRF3 nesta decisão, seguindo a prática usual do TRF3 de não o considerar em seus julgados.
A decisão do TRF3 neste caso foi contestada pelas autoridades fiscais brasileiras. Ao examinar as circunstâncias específicas do caso, o STJ decidiu que o assunto deveria ser analisado novamente pela instância inferior, levando em consideração o ADI 5/14.
O STJ concluiu, de forma diversa do entendimento do TRF3, a legislação brasileira e a jurisprudência prévia do STJ, que a definição de royalties para fins fiscais não exige qualquer transferência de tecnologia.
Na opinião da Turma do STJ, a instância inferior deveria se atentar especialmente ao fato de que os serviços de engenharia estariam abrangidos pela definição de serviços independentes prevista no artigo 14 do TDT Brasil-Espanha. Além disso, considerando que o Protocolo do TDT Brasil-Espanha estabelece expressamente que o artigo 14 também seria aplicável a serviços prestados por pessoas jurídicas, o STJ demonstrou uma tendência à aplicação do artigo 14 (ao invés do artigo 7) e, portanto, para a possibilidade de cobrança de IRRF no Brasil.
Esperam-se novos desdobramentos quando o TRF3 reanalisar o assunto e possivelmente quando essa decisão do STJ passar a ser apreciada no julgamento de outros casos.
Além de destacar a potencial aplicação do artigo 14 dos TDTs, o STJ destacou que a análise do TRF3 deveria considerar o tratamento atribuído pela Espanha a estas remessas, de modo a não criar um arranjo híbrido, nos termos da Ação 2 do Projeto de Erosão de Base e Transferência de Lucros (BEPS) da OCDE/G20, expressando certa preocupação com o fato de que os contribuintes poderiam estar se beneficiando de uma tributação reduzida.
Embora a atenção aos arranjos híbridos seja de fato importante, sob uma perspectiva prática, convém destacar que a definição ampla de serviços técnicos atribuída pelas autoridades fiscais brasileiras e as suas interpretações sobre os TDTs podem conduzir a uma dupla tributação.
Momento do recolhimento de IRRF
Em agosto de 2020, a Primeira Turma do STJ decidiu, por unanimidade, ao analisar o REsp 1.864.227, que o IRRF deveria ser recolhido na data de vencimento da obrigação ao invés da data de seu crédito contábil.
O processo originou-se de uma autuação lavrada pelas autoridades fiscais federais contra o contribuinte, exigindo o recolhimento de IRRF sobre as remessas efetuadas para uma sociedade sediada nos EUA relativas à licença de comercialização de software no momento em que a dívida havia sido registrada para fins contábeis pela sociedade brasileira.
De acordo com a legislação brasileira, o IRRF deve ser recolhido no momento do pagamento, crédito, entrega, emprego ou remessa de rendimentos a um beneficiário no exterior. Historicamente, as autoridades fiscais federais têm interpretado que a expressão crédito corresponde ao crédito contábil pelo importador dos serviços no Brasil, o que era discutível.
No entanto, em março de 2014, a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), a instância superior na esfera administrativa tributária federal, já havia esclarecido que o IRRF não seria devido no momento do crédito contábil, mas apenas quando os recursos estivessem econômica e juridicamente disponíveis (fato gerador do imposto sobre a renda) para o beneficiário. Na opinião da corte administrativa, o valor da dívida estaria juridicamente disponível na sua data de vencimento com base na legislação civil.
Sob uma perspectiva prática, esta lógica evitaria que a decisão das empresas brasileiras de não pagar a obrigação para o prestador do serviço no exterior adiasse ou até evitasse o recolhimento de IRRF.
Até esta confirmação pelo STJ, permaneciam algumas discussões sobre se o IRRF deveria ser recolhido quando do efetivo pagamento dos recursos ao exterior ou quando do vencimento das obrigações.
É necessário ter em mente que, embora esta lógica não deva, na teoria, ser aplicada a outros tributos federais incidentes na importação de serviços – tais como as Contribuições ao PIS e ao Financiamento da Seguridade Social (PIS/COFINS-Importação) e a Contribuição para a Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) – as autoridades poderiam tentar estender este raciocínio a estes tributos e questionar seu recolhimento caso realizado apenas no pagamento efetivo dos recursos ao exterior. É válido observar que a Câmara Administrativa de Recursos Fiscais (CARF) concluiu, em pelo menos um caso, que o IRRF e a CIDE possuem o mesmo fato gerador e que a CIDE deveria ser recolhida quando o IRRF fosse considerado devido.
Esta linha de raciocínio é discutível. Embora o imposto sobre a renda no Brasil, em geral, tenha como fato gerador a disponibilidade econômica ou jurídica da renda, o mesmo conceito não se aplica à CIDE. A CIDE não incide, em circunstância alguma, sobre a renda.
A importância de se manter atualizado
Muito embora o panorama legislativo acerca da tributação na importação de serviços não tenha sofrido alterações significativas nos últimos anos, o surgimento de novas interpretações acerca de sua aplicação é comum no Brasil, o que requer daqueles que possuem negócios no Brasil e prestam serviços a pessoas no Brasil fiquem atentos e mantenham-se atualizados para confirmar se suas práticas estão em linha com o entendimento atual de forma a eliminar possíveis contingências e vislumbrar eventuais oportunidades.
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Stephanie Makin |
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Sócia Machado Associados T: +55 11 3093 4834 E: sjm@machadoassociados.com.br Stephanie Makin é sócia de Machado Associados, com atuação nas áreas de tributos diretos, tributação internacional e preço de transferência. Durante seus mais de 11 anos no escritório, ela participou de diversos projetos de reestruturações societárias relevantes e operações de M&A internacionais. Stephanie também assessora clientes fazendo negócios no Brasil, bem como clientes brasileiros que investem no exterior, com um enfoque especial nas regras brasileiras de tributação de lucros auferidos no exterior (CFC) e os efeitos de tratados para evitar dupla tributação assinados pelo Brasil. Stephanie também se dedica à elaboração/revisão de cálculos de preços de transferência e a assessorar clientes com questões complexas envolvendo as regras de preços de transferência. Stephanie possui LLM em Direito Tributário pelo Insper, São Paulo. |
Ana Lucia Marra |
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Sócia Machado Associados T: +55 11 3093 4833 E: alm@machadoassociados.com.br Ana Lucia Marra é sócia do Machado Associados, com 24 anos de experiência em consultoria na área tributária, atuando na gestão de projetos e equipes para atendimento de empresas multinacionais no Brasil e no exterior de diversos setores. Ana possui uma vasta experiência na avaliação de impactos fiscais de operações/estruturas, identificação de alternativas para otimização da carga tributária e mitigação de riscos fiscais, bem como consultoria na aplicação das regras brasileiras de tributação de lucros auferidos no exterior (CFC), regras brasileiras de preço de transferência e a tributação de operações internacionais. Ela também assessora os clientes na condução de fiscalizações e com litígios em suas áreas de especialização. Ana possui pós-graduação em Administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas, em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em Direito Tributário internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário, São Paulo. |